Texto: Evidências do corpo


Evidências do corpo
Este texto parte da experiência de criação e apresentação de duas performances específicas: Carta e tenho medo de quem só quer o meu bem. Sendo assim, as reflexões aqui apresentadas dizem respeito a ambas não tendo a pretensão de serem válidas para o tema em geral. Entretanto, há algumas questões que são importantes para se pensar sobre a performance e o corpo contemporâneos. Carta foi performada duas vezes: em 2007, na Galeria Vermelho, São Paulo, durante a Mostra de Performances VERBO; em 2010, na Galeria de Arte do DMAE, Porto Alegre, durante o evento Plataforma Performance. Já tenho medo de quem só quer o meu bem foi realizada em Belo Horizonte, em 2009, durante o MIP2 – II Manifestação Internacional de Performance.
A escolha específica destas duas experiências-trabalho para servirem como motor para a reflexão e escrita sobre certas questões se deve à constatação de que elas tratam entre si de temas análogos,  podendo ser analisadas em conjunto e, também,  por levantarem problemas comuns a ambas mas que reverberam no campo da performance.
A performance como experiência-trabalho
A experiência como algo da ordem do vivencial. Em performance, é a colocação do corpo em ação. É o ato e o que ele imprime no corpo (ou faz brotar) como sensação, percepção, conscientização. O corpo do performer e também os corpos de quem  o assiste são experimentados em um contato recíproco. Sendo assim,  a ação  é, ao mesmo tempo, reação: a ação é pré-concebida pelo performer que, ao realizá-la, está submetendo seu corpo ao impacto da presença e da resposta dos outros corpos e reagindo aos mesmos.  Corpo a corpo.
A postura, a maneira de oscilar o peso em uma perna e outra, o movimento das mãos, a atenção focalizada ou não, os olhos  que fogem ou sustentam o olhar, os silêncios, a movimentação dos outros corpos no espaço... Estes são alguns dos indicadores  externos capturados pelo corpo que performa. Vale sublinhar que estes sinais não são avaliados de forma consciente durante a performance. São percepções, impressões que só passam ao plano da consciência após a performance, em uma etapa posterior que é a da reflexão sobre o trabalho realizado. Por isto é que a performance é uma experiência-trabalho. Colocar o corpo em ação, provar do momento em que o processo acontece – isto é a própria performance, é a co-existência no espaço e no tempo como experiência e “trabalho final”.
A performance Carta parte da apropriação da Carta ao Pai, de Franz Kafka, que a escreveu como um desabafo, uma confissão ao pai. Porém, ao que se sabe, ele nunca teve coragem de entregá-la ao seu destinatário. Faço uma cópia manuscrita de todo o texto alterando o gênero do masculino para o feminino: do filho ao pai torna-se da filha para a mãe. Esta cópia é realizada antes da performance propriamente dita e, como é feita à mão,  leva dias em sua execução. É como se fosse uma parte “privada” da performance: não ocorre na presença de um público. A performance consta da leitura em voz alta desta carta, ao término da mesma há a abertura e sustentação dos braços em cruz, o final é ditado pelo limite de exaustão do corpo (fig. 1 e 2)

Fig.1. Carta, 2007. Galeria Vermelho, São Paulo.

Fig.2. Carta, 2010. Galeria de Arte do DMAE, Porto Alegre.

Tenho medo de quem só quer o meu bem consiste em comer compulsivamente e, ao mesmo tempo, falar frases que escutamos durante a infância sobre a alimentação e sua relação com a saúde, a beleza e o crescimento, por exemplo. Uma trilha composta por Ulises Ferretti faz uso de sons que evocam o mundo infantil e, simultaneamente, trabalha junto com o corpo para tensionar a ação. Esta performance também é levada até o limite do corpo da executante[1].
Ambas as performances tratam da educação familiar em sua ambigüidade. Do amor que pode ferir, deformar, con-formar. São trabalhos que revelam tanto o abismo como a ponte existentes entre o adulto e a criança. Em Carta, evidenciam-se as deformações que  a educação provoca mesmo mirando outro alvo, é a instauração do abismo... Tenho medo de quem só quer o meu bem mostra o contato cotidiano  e direto que molda a maneira de perceber  o próprio corpo e o mundo, é a imposição de uma ponte e da sua travessia diária.
Estas duas experiências-trabalho tocam ainda nas seguintes questões que serão desdobradas a seguir: a  importância da performance como ação de um corpo que não está vendendo nenhum produto; a performance como resistência; a construção da performance e, por fim, o limite do corpo.
Corpo próprio
O corpo do performer tem uma potência que é adquirida pela  sua distância em relação aos corpos cuja imagem é apresentada exaustivamente em todos os lugares. Esta imagem é a de um corpo idealizado: sem identidade, sem marcas, sem nome. Além disto, ela sempre está a serviço de algum interesse mercadológico. Ter corpo próprio significa que ele não é instrumentalizado, sugado pelo capitalismo e posto a serviço da venda de algum produto ou idéia. É corpo-carne. Corpo-vida.
Na performance, o corpo realiza uma ação em um tempo próprio. Tempo do ritual, de capturar a atenção e de jogar com diferentes níveis de concentração. Muitas vezes não há narrativas que obedeçam ao linear encadeamento de início-meio-fim. Performances, inclusive podem ser interrupções nesta lógica.
Em Carta é um corpo que oscila entre o cristal e o aço: a fragilidade e a vulnerabilidade pautando a sua forma de apresentação, mas a ação final testando a resistência de seu material (pode ser pensado também como corpo martirizado). Já em tenho medo de quem só quer o meu bem é apenas um corpo que busca ser percebido em sua humanidade: parte de um “clichê” feminino e se desnuda para sublinhar o fato de ser um corpo ordinário de mulher – comum a todas (fig. 3 e 4).

Fig. 3. Tenho medo de quem só quer o meu bem, 2009. Belo Horizonte.

Fig. 4. Tenho medo de quem só quer o meu bem, 2009. Belo Horizonte.

A resistência ao corpo conformado
Con-formado. Ter determinada forma, estar de acordo com um modelo exterior, ter-se adaptado. Conformado significa ainda resignado, sem resistência. A educação, em suas diferentes esferas, modela os corpos. Na escola e em casa somos treinados para sentar, andar e até mesmo para amar de determinadas maneiras. É o corpo conformado. Corpo que se dobra a modelos que lhe são estranhos, mas aos quais se rende (porém não pacificamente, sempre algo escapa e se manifesta intempestivamente causando estranhezas e também tornando algo seu).
 A idéia das performances  aqui comentadas nasceu justamente como algo que não se con-forma. É da percepção de que a educação modela o corpo que elas brotaram. Surgiram para falar disso.
A construção da performance: partitura para o corpo
Estas performances foram exaustivamente construídas. Os detalhes foram pensados em função da idéia principal. As ações experimentadas previamente, ensaiadas, cronometradas e estudadas diante do espelho. Os elementos utilizados eram portadores de significados específicos. Como o corpo se apresentava era também o resultado de longo tempo de gestação, sem contar a preparação física que antecedeu a cada uma.
Em Carta, o objetivo era que o corpo alcançasse a idéia de vulnerabilidade. Com a observação de diferentes performances tornou-se evidente que o corpo nu era menos vulnerável que aquele que foi usado: sem a parte inferior da roupa. Ainda foi agregada a urina como mais um elemento da performance e assim foram somando-se também a corda que amarrava os pés e a bacia onde eles ficavam de molho. Para finalizar a performance, sair do espaço caminhando, apesar da exaustão, também reforçava a relação entre fragilidade e resistência.
Para Tenho medo de quem só quer o meu bem foi pensado um figurino que representasse a idéia de uma “mulher-padrão”. Adaptada e moderada: a roupa rosa-claro, o cabelo em um penteado discreto, a maquiagem delicada e o andar pausado. Todos estes elementos que indicavam um comedimento sofriam uma perturbação pela ação crispada, rápida, compulsiva.
Então, o corpo da performer não era espontâneo, ele foi pensado e para ele foi escrita uma partitura que, por sua vez, não é simplesmente a expressão de algum “eu interior”.
A comunhão através do limite
 Para finalizar, uma última questão: o que pode fazer o corpo do performer e o de quem assiste entrar em sintonia?  Não é por que tenho um corpo que comungo com outros corpos. A vida e a convivência seriam mais simples se fosse assim, mas parece que o ser humano precisa de algo mais do que a constatação de sermos feitos da mesma matéria. No caso das performances comentadas o que uniu o corpo da performer a cada um dos outros corpos presentes foi a prova do seu limite, de ter experimentado sua margem. Publicizar esta fronteira, testar em público o limiar do suportável é algo que faz os corpos que assistem também participarem de forma intensa. Contágio. Respiração suspensa.
Tanto Carta como tenho medo de quem só quer o meu bem tiveram a pretensão de capturar a atenção do público e buscaram mexer, alterar em cada um a percepção do próprio corpo. Torná-lo mais evidente, mais presente e, assim, trazê-lo à tona.

                                                                                                  claudia paim
                                                                                                   2010


[1] O registro da performance pode ser visto em claudiapaimperformance.blogspot.com