segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Artigo: TEXTOS E VOZ NA ARTE CONTEMPORÂNEA



(Artigo a ser  publicado nos Anais do
I Seminário Internacional Literatura, Imaginário e Cultura e do 
I Seminário Internacional Vozes Femininas e escritas do Eu 
2015 - FURG, Rio Grande)  
 

 TEXTOS E VOZ NA ARTE CONTEMPORÂNEA



Resumo
Este artigo é uma reflexão sobre a presença de textos e de oralidade na arte contemporânea. São analisadas algumas performances nas quais a leitura de fragmentos textuais é responsável pela captura da atenção do público e pela provocação de sensações que levam à percepção das naturalizações de ideias a que estamos submetidos. Também é observado um conjunto de propostas de arte sonora para mídias móveis, chamado Acontecimentos Sonoros. São escritos que visam estimular o ouvinte a elaborar imagens mentais que serão formadas com as vivências de cada um. A partir de percursos realizados, a observação da paisagem e do entorno social é o material com o qual são compostos pequenos textos ou apenas frases poéticas esparsas que são lidos e gravados em um smartphone e imediatamente compartilhados. Podem, ainda, ser utilizados recursos básicos de sonoplastia que o ambiente ofereça. No presente texto, estão conceitos, tais como a voz como ato performático, de Celina Nunes de Alcântara, e o acontecimento, de Deleuze.  Este trabalho alinha-se com o imaginário e poéticas da contemporaneidade por trabalhar de maneira híbrida com a arte, a literatura, fragmentos e o uso da tecnologia digital.
Palavras-chave: voz; performance; acontecimento sonoro; arte contemporânea

1.  A materialidade da voz
Como pensar a voz em proposições artísticas contemporâneas? Este artigo é um esforço neste sentido. A partir de três eixos, será realizada uma reflexão que aproxima texto, voz, performances e proposições sonoras tratando de analisar trabalhos da autora, bem como de outros artistas.
Fernando Ribeiro[1] realizou a performance Eu Prometo durante o evento Paralelo 31, em Pelotas, RS. Ela foi apresentada junto ao prédio do Centro de Artes da UFPel, onde o artista se colocava de joelhos entre um balde com água fervente e outro balde com gelo. Diante dele, havia um grande vaso de vidro transparente. Ribeiro foi calmamente despetalando várias rosas brancas e colocando as pétalas na água fervente. Enquanto agia, ia dizendo “quando eu falo, 'eu prometo', eu prometo uma ação a alguém”. Sua fala era, sempre, uma variação desta frase. Depois, ele colocava as mãos em concha na água quente, retirando pequenas porções que despejava no vaso. Intercalava, mergulhando suas mãos no gelo. Houve repetição do texto e da ação até que o vaso estivesse completamente cheio. Após, ele colocou a água com odor de rosas em um pulverizador e borrifou o espaço e o público impregnando a todos com o suave aroma.  Por último, despejou sobre seu corpo a água de rosas restante.
Nessa performance, o que ativa várias questões é o texto que tem um traço de redundância em relação à ação: ele promete e age. Fala repetidas vezes este texto conciso. Sua voz soa como uma promessa, um aviso de algo que, mais do que anunciar o que virá, sublinha a ação que vemos. Há dor e suspensão nos momentos iniciais quando observamos a sensação de queimadura que o performer sente ao colocar suas mãos na água extremamente quente. Compactuamos com seu breve alívio ao mergulhá-las no gelo – conforto logo transformado em dor novamente: agora o que queima é o frio. Assim, a sua promessa de ação é imediatamente cumprida diante de nossos olhos. Ou mais do que isso, pois sentimos no nosso corpo as sensações que ele tem e que presenciamos. Um texto curto que não oferece mais do que vemos. Repetido de forma circular e com poucas e controladas variações. O corpo acompanhando a repetição do texto com seu próprio agir. É a ação que hipnotiza, mantém-nos suspensos e em silêncio diante desse corpo que busca, com esforço, encher o vaso até seu transbordar. Ansiamos pelo extravasamento do líquido e somos cúmplices da dificuldade necessária para tal.
A voz, qual seu papel? Se fecharmos os olhos e, sem ver a ação desempenhada pelo performer, quedaríamos suspensos apenas pela escuta? Que sensações nos invadem? É importante ressaltar que Fernando Ribeiro não usava nenhuma entonação dramática específica. O texto foi dito de uma maneira bastante objetiva e despida de características emocionais. Uma voz “fria”. No entanto, se pensarmos em frieza, já reconhecemos a voz como matéria: um corpo dotado de qualidades, uma materialidade para a voz na performance.
Nas artes visuais, não se encontram com tanta frequência, como no teatro ou na música, por exemplo, reflexões sobre a voz. Em contrapartida, há diversas investigações teóricas e teórico-práticas sobre as relações entre texto e imagem.  Todavia, aqui, o esforço é no sentido de pensar sobre a voz como matéria e como gesto performático.
Gilberto Icle e Celina Alcântara, que falam a partir do trabalho do ator, problematizam a voz como elemento que pode e tem de ser analisado para além da expressão, sobretudo ao se observar práticas do teatro pós-dramático onde a materialidade da voz deve ser emancipada da relação semântica do texto. Esse pensamento pode ser trazido para o campo da arte da performance. Para os autores, a voz é tomada “como lócus e potência de acontecimento corpóreo vocal” (2011: 130). A voz do performer pode ultrapassar o sentido do que ele diz ou vocaliza, mas a experiência de sua presença é fato. A experiência da enunciação: da emissão da voz daquele que fala. Há ainda a experiência da escuta. Necessariamente há dois corpos em interação: aquele que fala (mas também se ouve) e aquele que escuta (mas também fala por suas atitudes, energia e posturas). Para os autores em questão, a voz é “antes de tudo uma experiência, uma experiência de voz, uma voz experiência” (IBIDEM). O corpo de quem assiste e participa de uma performance onde há uso da voz, é pela voz também tocado. Pelo que nela transparece para além do sentido do que é dito. Pela sua clareza ou opacidade, pelo ritmo, pelo espaço que ela ocupa. Em Icle e Alcântara, vemos que

Afinal, a voz  não é apenas a extensão do corpo, ela é corpo, constitui-se por qualidades psicofísicas que podem ser dimensionadas por características comumente atribuídas ao corpo: variação de tonicidade, níveis diferenciados de energia, possibilidade de transformação a partir de um trabalho técnico preciso, entre outras (2011: 132).

Pode-se observar a voz em sua corporeidade na instalação Traduzindo, da autora, realizada no Instituto Goethe, em Porto Alegre, em 2003. Juntamente com a consideração da mesma como ato performático. Para Alcântara,
[…] pensar a voz como ato performático é pensá-la na sua complexidade de coisa escrita, falada, ouvida, percebida e constituída pelos sujeitos desse ato. Mas também como ação que ocorre no tempo e no espaço, reunindo expressão e fala juntas numa situação transitória e única.
[…] parece indispensável compreender a voz como a extensão de todo um sistema corporal do qual ela é um elemento constituidor e constituinte (2010: 43).

A instalação Traduzindo, era composta da colagem, no saguão do Instituto Goethe, de centenas de adesivos produzidos a partir daqueles vendidos no comércio e que dizem que devemos sorrir, pois estamos sendo filmados. Foi feita uma apropriação da arte desses adesivos e uma alteração do texto para “cuidado: você está sendo filmado”. Foi invertido o sentido da boca da imagem sorridente, que passou a se apresentar triste (Fig.1).
Com estes adesivos, foram cobertas duas paredes, em um ângulo de 90º, do espaço; ali havia também uma caixa de som que emitia uma voz que sussurrava fragmentos de frases encontradas em publicidades de empresas de vigilância. Ou seja, esse texto foi uma colagem de outros de autoria desconhecida. Esse dado é relevante porque, mesmo não sendo um texto autoral, a fragmentação e a escolha dos pedaços com os quais se construiu essa trilha adquire um tom próprio.  Eram cerca de 20 frases e expressões curtas, tais como “para sua segurança” e “resposta armada imediata”, que eram lidas de maneira impessoal. Optou-se por não interpretar, na leitura, com variações de intensidade dramática para que o impacto do texto se desse por sua significação e apresentação. A voz era sussurrante. Essa colocação objetivou elaborar uma experiência de escuta que remetesse a avisos de situação de perigo, mas quando o grito não é o adequado, mas o alerta que busca passar despercebido e que carrega, talvez, maior urgência em ser ouvido. 


Fig 1. Claudia Paim. Cuidado, adesivo, 12 x 20 cm.

Além da situação da voz sussurrante, o texto era ouvido de maneira circular, não havia linearidade: nem início, nem fim. A escuta era ininterrupta, gerando uma experiência de claustrofobia. A repetição como acúmulo de informação, mas também de sensações, algo que vai se adensando e instalando nos corpos. A experiência de que o tempo e o espaço se tornam mais espessos e menos transparentes, a premência em afastar-se de uma situação que se torna um aprisionamento. O sussurro como um som que persegue os corpos, infiltrando-se por todos os cantos do espaço. Uma prisão sem paredes.
Assim, pode-se pensar esta voz experiência: como um corpo que afeta outros corpos e que foi construída conscientemente para tal, para gerar as sensações apresentadas, para provocar com sua presença alterações nos corpos de quem percorria a instalação. O tom sussurrante e monocórdio que gerava maior sensação de ser uma escuta paradoxal pelo contraste com a rudeza do sentido do texto. A repetição e o volume baixo da emissão não pretendiam que a voz tivesse relação de ruptura com o espaço, pelo contrário, de certa continuidade perversa que promovia alteração nos corpos, mas de uma forma bastante gradual. Talvez essa seja uma relação bastante usual nos meus trabalhos: não buscam instaurar-se subitamente, mas justo pelo seu contrário – paulatino, gradual, sutil.
Até o momento buscou-se promover uma reflexão sobre a voz como material, tanto na performance de Fernando Ribeiro como na instalação Traduzindo, de Claudia Paim, assim como ato performático. A voz foi então observada não apenas na sua relação de emissora de um texto portador de sentido, mas, ainda, como um dado físico e concreto, dotado de qualidades e com as quais também se operou nos trabalhos referidos, buscando a construção de poéticas específicas.

2.  A presença de textos em performances – poéticas da contemporaneidade
Pode-se refletir acerca de uma recorrência nas poéticas contemporâneas: quando com o uso experimental das tecnologias disponíveis aos artistas há, ainda, o hibridismo entre práticas criativas para a construção de uma poética. Observa-se que, pelo menos, desde o início do século XX e, a partir dos anos 70, há cada vez mais, no cenário artístico, poéticas impuras, ou seja, proposições artísticas construídas com técnicas e conceitos que se misturam. Um exemplo pode ser o recente trabalho da autora, chamado Lamento Mudo, apresentado em Pelotas, durante o evento Paralelo 31. Lamento Mudo foi constituído de uma cristaleira de madeira e vidro que ficava no espaço expositivo com as portas abertas para que o público pudesse se aproximar, manusear e se apropriar das fotografias que estavam ali disponíveis. Além de 300 cópias de um total de 20 imagens de detalhes de esculturas em mármore nas quais o tempo havia deixado marcas (tais como corrosões e fraturas) havia nas prateleiras louças trincadas, flores secas e marcas da ausência deixadas por vazios na poeira acumulada. As fotografias foram impressas em três tamanhos distintos: 13x18cm, 10x15cm e 3x4cm. O primeiro em uma referência às imagens colocadas nos porta-retratos para a preservação da memória; as fotos 10x15cm são do tamanho usual dos cartões postais (também em uma alusão à lembrança) e, as menores, em uma clara relação com as fotografias usadas nos documentos e que visam à identificação do portador. Assim, para a construção dessa proposta, havia móvel, objetos e fotografias. Essa situação de soma, de inclusão, de impureza, de hibridismo e de construção com elementos díspares é bastante usual nas poéticas da contemporaneidade.
Agora, serão analisadas duas performances onde se observa o hibridismo entre texto e ação. Discurso amoroso, performance de minha autoria, foi realizada em 2014, em Pelotas (RS). A performer percorria calmamente o espaço onde acontecia o evento Casa da Alice (espaço da artista e professora de Artes da UFPel, Alice Monsell) e sentava-se na rua, próxima ao meio fio. Colocava, no chão, um coração de porco que segurava na mão e olhava ao redor dizendo “me fizeste tua imagem e semelhança e colocas-te na minha boca as tuas palavras. Mas nós não somos iguais”. Logo após começava a bater na carne, violentamente com um martelo. Depois de alguns minutos, levantava a cabeça, olhava ao redor e repetia a mesma frase. Voltava a martelar. Essa ação se repetiu até o completo destroçamento do coração. Então, a performer levantava-se e saía.
A repetição do texto tem uma característica de oração ou mantra e, por sua circularidade, gera uma concentração sobre o texto e densidade na ação. Esse texto foi composto com dois fragmentos encontrados em escritos religiosos, a saber, do Gênesis e Jeremias. Este dado é importante, pois o texto é uma apropriação. Não são palavras de autoria da performer, mas das quais ela se apropria para a construção da performance, bem como o próprio título da proposta que faz uma referência ao livro Fragmentos de um Discurso Amoroso, de Roland Barthes. Aqui, coexistiam ainda sentidos: de um lado, o discurso da religião, dispondo dos corpos como imagem e semelhança de um deus, por outro lado, há uma interação, talvez menos evidente, com a relação amorosa: onde muitas vezes ocorre um amalgamento de dois corpos, duas subjetividades (em geral, não é relação estável e necessita de esforços constantes para que se mantenha). Assim, tanto no interagir com o corpo santo como com o corpo profano, pelo amor, pela semelhança, somos engolfados e perdemos algo de próprio, trocamos propriedades para deixar surgir um outro que nasce da e pela relação. Todavia, qual a dimensão dessa troca? É troca com qualidades bem distribuídas? É troca? Qual o preço? A quem serve?
 Há ainda uma outra performance na qual foi realizada a apropriação de texto. Carta foi apresentada duas vezes, a primeira, em 2007, em São Paulo, e a segunda, em 2010, em Porto Alegre. Essa performance foi criada a partir do texto da Carta ao pai, de Franz Kafka. Esta carta foi copiada à mão em papel específico de folhas bastante finas. Houve uma alteração do texto original, pois o gênero masculino foi trocado pelo feminino. Por exemplo, onde no original Kafka escreveu “querido pai”, na cópia ficou “querida mãe”. Assim pretendeu-se dar um maior alcance ao texto que, além de ser um ajuste de contas de um filho com seu progenitor, transformou-se em uma carta de uma filha para sua mãe. As dezenas de páginas eram lidas uma a uma, com voz controlada e esvaziada de conotações emocionais. Esse uso da voz foi intencional: buscou-se uma tensão entre o conteúdo expressivo do texto, que é bastante complexo e contundente, com o corpo quase que “automatizado” da performer que repetia o gesto de ir soltando as páginas no ar, para que elas deslizassem balançando suaves, até acomodarem-se no chão ao redor do corpo.
Esta apropriação do texto do Kafka não tem originalmente a intenção de falar acerca de plágio, mas antes é uma homenagem à atualidade da reflexão do autor: sua carta ainda produz sentido na crueza com a qual analisa um amor que esmagou o ser amado. O pai de Kafka, por amor, queria um filho forte e enérgico – era assim que os homens bem sucedidos deveriam ser. No entanto, conforme o autor, a mão de seu pai e seu próprio material foram estranhos entre si. Assim, o resultado foi a precarização do menino – ser frágil e sensível que não pode corresponder aos desejos paternos. E isto não é universal? Esta maneira autoritária de amar não é encontrada em diferentes contextos? Ela é ainda muito atual. Foi para evidenciar essa potência de morte do amor que tal performance foi construída. Foi uma forma de dizer que Kafka sobrevive nas relações contemporâneas. 
A presença de textos em poéticas contemporâneas verifica-se também de outras maneiras. Por exemplo, no trabalho Lista de coisas brancas, de Raquel Stolf. Essa artista, que vive em Florianópolis, além de trabalhos onde há recorrência do uso da palavra em propostas visuais, tem trabalhado também com proposições sonoras. Agora será observado seu trabalho Lista de coisas brancas – coisas que podem ser, que parecem ou que eram brancas[2]. Essa lista de palavras é pela inter-relação entre as mesmas que adquire maior potência poética. Não é um texto ficcional, mas é o que seu próprio nome diz.  Essa lista teve diversos desdobramentos, na verdade, pode ser pensada como um trabalho que foi sendo processado entre 2000 e 2003, resultando em CD, com gravações de áudio e instalações onde convergem as palavras escritas com a audição das mesmas. Aqui, vale pensarmos na multiplicidade que a artista confere a esse seu inventário, pois, além da possibilidade  de lermos as coisas selecionadas por ela, há áudios onde se escuta sua voz sobreposta, dificultando assim o acesso ao sentido do texto, entretanto, adensando a percepção da operação de inventariar que se dá pelo acúmulo, pelo excesso. Alguns exemplos de suas coisas brancas são: avalanche, arroz, toalha de mesa, isopor, caderno novo, tontura ... (Fig. 2).



Fig 2. Raquel Stolf. Detalhe da instalação no Torreão, na exposição individual Ruídos do branco,
em Porto Alegre-RS, 2002. Arquivo de Raquel Stolf.



3 Acontecimentos Sonoros
 Agora, serão abordadas outras proposições artísticas onde o foco recai sobre a produção autoral de textos por artistas visuais e o uso das tecnologias para a difusão de trabalhos onde a voz é recurso fundamental e primeiro. Como o outro escuta? Como soa para o outro a minha voz? O ouvinte interrompe sua rotina para realizar a escuta? A escuta seria alguma forma de suspensão? Pausa acústica?
Acontecimentos Sonoros é um conjunto de proposições sonoras de minha autoria. Vale ressaltar, primeiro, que é importante falar dos processos de criação que têm me levado a utilizar a palavra escrita como material criativo. Anteriormente, já foram abordadas algumas performances onde havia a presença de textos e de voz. Alguns textos formados por apropriações e aproximações de escritos anônimos ou de outros autores. No entanto, de agora em diante serão trazidos textos “100% autorais”.
Além da escrita com finalidade acadêmica que geralmente se pauta pela elaboração por meio de pesquisa e tem um tom objetivo, de acordo com as demandas institucionais, tenho a prática da escrita como anotação poética. Até o ano de 2014, esta escrita era bastante íntima e, via de regra, não era trazida a público. Era como um componente poético de processos criativos ou de momentos onde surgia a necessidade de criar. Entretanto, eu não tomava estes textos como algo que tivesse validade em si mesmo. Por nenhuma razão específica, a não ser a de não pensar no ato de escrever como algo que pudesse ter a potência que buscava em minha prática como artista visual.
Desde 2014 passei a produzir textos de maneira mais sistemática. Assim, comecei a escrever em um caderno de notas que foi, lentamente, adquirindo um volume de material textual e onde havia ainda alguns elementos colados de forma despretensiosa: pequenas notas fiscais, fragmentos de envelopes, entre outros. A escrita eram frases esparsas que resultavam de uma elaboração tanto intelectual quanto emocional (percebendo-as como instâncias presentes simultaneamente) e ainda pequenas ficções (que foram criadas a partir da observação, durante caminhadas, das ruas e pessoas). Estas últimas foram chamadas de pequenas histórias silenciosas e são uma busca de criar sentido e produzir imagens por meio do texto. 
Após alguns meses, retomei esse material que foi retrabalhado: houve supressões de textos inteiros, reescritas parciais, buscando maior potência poética, não apenas nas imagens apresentadas, mas por um trabalho de observação da sonoridade e do ritmo das palavras. Esta foi a gênese do livro Em torno da ausência (edição da autora, 2015). Primeiro movimento para pensar a escrita como material artístico em minha poética. Um trânsito, uma ponte entre as artes visuais e a literatura. Deslocamento feito a partir do primeiro campo e talvez isso seja relevante de ser enunciado, pois é dali que carrego meus referentes e métodos de criação. Não pretendo colocar-me como escritora, mas como uma artista visual que escreve – criadora em um processo de criação onde há o hibridismo e contaminação de distintas práticas.
A artista Raquel Stolf novamente é aqui evocada como uma possibilidade de diálogo quanto ao hibridismo entre textos e imagens em sua proposição FORA [DO AR], de 2002-2004, que além de CD com 33 áudios, apresenta material impresso composto por folhetos e encarte (Fig. 3).



Fig. 3. Raquel Stolf. FORA [DO AR], 2002-2004.
Publicação sonora: CD de áudio com material impresso (cartões, folheto, encarte).

Conforme Raquel Stolf, “os 33 áudios do disco podem ser desdobrados em micro-intervenções, instalações, ações, vídeos, desenhos e outros textos”[3]. Assim se evidencia o hibridismo na poética desta artista e a relevância da presença da voz.
Quanto aos meios de comunicação e seu uso por artistas? É um consenso que os artistas buscam experimentar com a tecnologia que encontram disponível. Assim, conforme Briggs e Burke (2006), tanto foi com a arte postal como com propostas que usaram o telefone ainda no século XIX. A Arte Postal como uma rede de arte por correspondência, por meio do correio, significando uma ampliação do espaço da arte, é a ideia central defendida por Andreia Paiva Nunes (2004). O próprio rádio foi e é até hoje também objeto de diversas propostas artísticas como, por exemplo, um programa experimental radiofônico, chamado Questão de Gênero, de 60 minutos de duração, de minha autoria, com intervenções sonoras e música, que foi criado para ir ao ar pela Rádio da Universidade da UFRGS, no dia 08 de março de 2006, dentro do Programa Histórias Musicais. Era um conjunto de textos autorais que dialogavam com a música de Billie Holiday[4].
O telefone e as propostas criadas por artistas apresentando um uso criativo e não usual para o mesmo é parte da pesquisa de Tiago Franklin Rodrigues Lucena (2009). Dele, é o estudo sobre a Mobile Art ou m-art, como também é chamada.
Eclodem hoje os Moblogs, literatura em SMS, wireless mobile games, smart mobs, flash mobs: classificações de trabalhos produzidos com/para estes dispositivos que usam esta conectividade como potenciadora da transmissão e da própria experiência da arte. Mobile Art surge como um novo campo aberto pelo uso dos aparelhos celulares e sua estrutura multi-redes em favor da arte (LUCENA, 2009).
Dentro da m-art é que serão apresentados os Acontecimentos Sonoros, de minha autoria. Não é só arte sonora, pois tem texto e seu sentido é importante, por esta razão também não serão analisados apenas como Poesia Sonora, onde há um afrouxamento da relação som/texto/significado semântico.
Para Deleuze, o acontecimento é o seu próprio sentido. Ou seja, não há que buscar uma razão para o acontecimento, pois ele é o sentido (2000). Acontecimentos Sonoros é um conjunto de proposições sonoras que são produzidas e distribuídas com uso de dispositivos móveis. De acordo com Raquel Stolf
Pensar um trabalho como proposição implica em concebê-lo como algo que não se dissocia de seu processo, como algo situacional e que pode circular em alguns contextos de um modo quase imperceptível e sutil. Proposições sonoras podem solicitar uma participação do corpo, de ações físicas, como podem solicitar “atos mentais”, esperas e outras situações, como modulações de escuta, propondo experiências acústicas (2011: 321).

Assim,  Acontecimentos Sonoros é um evento que interrompe o cotidiano de quem recebe um arquivo de áudio e se dispõe ao ato da escuta. Seu sentido reside em duas camadas que se conectam: o sentido do texto e o sentido da experiência acústica (de escutar). São proposições breves, carregadas de carga poética e sem nenhuma outra razão de ser, exceto a sua própria produção (pois é trabalho de artista), o seu compartilhamento (que gera a recepção) e a escuta.  Evidente que aquele que recebe essas proposições sonoras pode escolher entre ouvir ou não e, ainda, entre quando ouvir.
Em geral, os Acontecimentos Sonoros são compartilhados como mensagens inbox pelo serviço de rede social Facebook ou por meio do aplicativo de mensagens Whatsapp Messenger (software para smartphones). São proposições sonoras que surgiram como um desdobramento da produção de textos que vinha realizando. Há alguns anos atrás, recebia SMS (Short Message Service, é um serviço de troca, via celular, de textos curtos, também chamados de torpedos) do artista Leandro Machado. Eram mensagens breves e poéticas que geravam a necessidade de responder com igual intensidade, entretanto, a partir de textos que surgiam da observação daquilo que estava ao meu redor. Essa correspondência sempre me instigou. Havia a surpresa de receber e a busca pela retribuição – gerava-se todo um processo criativo disparado pelo e por meio do texto.
No ano de 2014, comecei de maneira mais sistemática a registrar minha voz ao falar pequenos textos que eram criados, geralmente, em situações de deslocamento. Havia um hábito de carregar cadernos de anotações e canetas que foi sendo substituído por um smartphone com o qual além de gravar áudios, realizava fotografias e vídeos. Do uso desse aparelho foi que nasceu a ideia de compartilhar as proposições sonoras. Aos poucos, foi-se impondo a potência das proposições sonoras mais do que as imagens fotográficas ou videográficas. Comecei a perceber que meus textos eram produtores de imagens, com eles eu dividia as sensações que tinha durante meus deslocamentos constantes (além de viajar com frequência, por possuir duplo domicílio em cidades que distam quase 350km entre si, realizo caminhadas e ando de bicicleta todas as semanas).
Propor uma experiência de escuta de um texto poético é um ato subversivo? Interrompe o cotidiano? Produz algum choque? Traz as sensações para o momento presente de cada escuta? Creio que Acontecimentos Sonoros torna o momento da escuta um  acontecimento – o sentido é a própria coisa: ato e experiência. Daí foi que surgiu a adoção do nome de Acontecimentos Sonoros para este conjunto de proposições que está ainda sendo trabalhado, em processo.
Conscientemente, entendo esse projeto como uma diluição do fazer artístico na vida cotidiana; não é uma conjunção de arte e vida, mas, sim, uma atitude de vida como arte. O cotidiano, a própria vida em suas minúsculas ações e momentos é transformada em arte que é dividida com algumas pessoas. Esse compartilhamento nada tem da ideia de grandes proporções. O público que tem acesso aos Acontecimentos Sonoros deve ser pensado em uma escala íntima e pessoal. Nada de cifras com muitos dígitos, mas o contato entre boca e ouvido possibilitado por uma mídia móvel. A atualização da poesia em um momento ordinário (talvez assim o tornando extraordinário). Situação efêmera e potente.
A seguir alguns exemplos de textos curtos que fazem parte dos Acontecimentos Sonoros:
1. há algo que transtorna na imensidão branca do Etna. Um vento que assombra as árvores. Apavoradas, agitam seus galhos deixando tombar, surdamente, bocados de neve.
2. ...tardes suaves como barcos atracados no cais.
3. tenho as mãos cheias de auroras. Garças brancas dançam nos meus olhos. No ventre, cegonhas mansamente se aninham.
São escrituras que brotaram de maneira bastante espontânea e que senti que poderia compartilhar imediatamente. Assim, são carregadas das sensações e da emoção no momento de sua criação. Em geral, “escrevo” o texto na memória e, durante esse processo, fico selecionando palavras tanto por seu significado e carga poética quanto por sua sonoridade. Após, gravo o áudio e posso experimentar com a incorporação de sons do ambiente, em seguida, faço o compartilhamento. Os textos sempre são gravados com a voz bastante esvaziada de entonação dramática, pretende-se assim concentrar seu interesse no sentido textual. Algumas vezes são incorporados sons locais, tais como cantos de pássaros ou o som das ondas do mar. Considero que eles adensam a escuta.
Há outros textos que são mais extensos, em geral, escrevo-os para poder visualizar sua totalidade e, então, passar para a etapa de “lapidação” com as alterações por substituição, adição e subtração. Após, é que são gravados e compartilhados. Alguns exemplos:
1. Muros de pedra retêm o tempo, como a madeira musgosa da velha carreta que jaz, dinossáurica, sob o cipreste. Caturritas espantam o silêncio que geme no mugir das vacas. Relincha a manhã preguiçosa. Velhos troncos e pedras cobertos de liquens enchem meu corpo de séculos. No final da Serra do Sudeste estão soterrados de história o estalar dos sabres e os barulhos de cascos do gado xucro e da cavalaria livre. Indiferentes, as bergamotas estalam de cor o verdume do campo. Como elas, os cardeais e meu coração.
2. Um homem de idade indefinida e paletó gasto. Olhos negros pregados no fundo das olheiras. A boca murcha pela falta de dentes e sorrisos. Ele caminha sem prestar atenção nas poças d'água. Decidido e altivo como aqueles que têm coragem de desafiar a chuva fria e a má sorte.
Assim, mesmo considerando que Acontecimentos Sonoros porte uma ideia de espontaneidade, são proposições sonoras que envolvem trabalho e reflexão para que adquiram tanto este tom de “frescor” quanto um ritmo adequado a cada ideia e sentido poético.


Referências
ALCÂNTARA, Celina Nunes de. “A Voz como Ato Performático e Cultivo de Si – aproximações interdisciplinares”. In: Trama Interdisciplinar. São Paulo: Programa de Pós-Graduação em Educação, Arte e História da Cultura da Universidade Mackenzie, 2010. Disponível em: <http://editorarevistas.mackenzie.br/index.php/tint/article/view/2138>, acesso em 06 mar. 2015.
BRIGGS, Asa; BURKE, Peter. Uma história social da mídia: de Gutenberg à Internet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.
DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2000.
ICLE, Gilberto e ALCÂNTARA, Celina Nunes de. “Teatro, Palavra, Performance: pensar a voz para além da expressão”. In: Repertório: teatro & dança. Salvador: Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia, 2011. Disponível em: <http://www.portalseer.ufba.br/index.php/revteatro/article/view/5733/4275>, acesso em 06 mar. 2015.
LUCENA, Tiago Franklin Rodrigues. “Telefones fazem arte”. 2009. Disponível em: < http://www.fav.ufg.br/seminariodeculturavisual/Arquivos/2009/artigos%20gt2/Tiago_Franklin%20-%20Telefones_fazem_Arte_UnB%5B1%5D.pdf >, acesso em 29 jul. 2015.
NUNES, Andrea Paiva. Todo  Lugar é Possível: a rede de arte postal, anos 70 e 80.  Dissertação de Mestrado. Porto Alegre: Instituto de Artes/UFRGS, 2004. Disponível em:    < https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/7037/000494374.pdf?sequence=1>, acesso em: 25 abr. 2015.
PAIM, Claudia. Em torno da ausência. Porto Alegre: Edição da autora, 2015.
STOLF, Raquel. Entre a Palavra Pênsil e a Escuta Porosa. Tese de  Doutorado. Porto Alegre: Instituto de Artes/UFRGS, 2011.





 




[1]     Performer que vive e trabalha em Curitiba - PR. Sobre Eu Prometo, ver maiores informações, inclusive quanto à reperformances em http://www.fernandoribeiro.art.br/br/artista/performance-art
[2] Mais informações disponíveis em: http://www.raquelstolf.com/?p=703
            [3]     Disponível em: http://www.raquelstolf.com/?p=234. Acesso em 21 ago. 2015.   

             [4]     Cantora norte-americana, 1915-1959.

Nenhum comentário:

Postar um comentário